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A MPB NA DITADURA MILITAR

Em agosto de 2011, fui convidado por Joilton Azeredo e Jane Terra a participar do programa Show Brasil, que era realizado nas manhãs de sábado na rádio WLYN 1360 AM, de Boston/MA. De início, respondi que não tinha nada em mente que pudesse agregar/contribuir ao horário deles, mas após mais alguns encontros, entre um bom bate papo e uma cerveja gelada, disse que iria ao programa e falaria sobre a Música Popular Brasileira – MPB, na ditadura militar de 1964. 

Como combinado, trabalhei na redação de um texto, gravei alguns CD’s com algumas das músicas mais relevantes daquela época e, à medida que eu fazia os comentários, a sonoplastia acompanhava com o áudio referente ao trecho do texto. Trago esse tema hoje, lembrando as dificuldades que nossos artistas tinham para driblar a censura e, o antagonismo atual de parte dos artistas que não se manifestam contra os entes que estão destruindo a cultura e a memória dos que enfrentaram seus algozes com malícia e perspicácia.

Entre 1964 e 1985, diversas personalidades do mundo artístico e cultural brasileiro, atores, poetas, jornalistas, diretores de cinema e teatro, tiveram seus trabalhos censurados por órgãos do governo que faziam o “controle sobre as informações que circulavam na sociedade”, como o Serviço Nacional de Informações – SNI e pelo Departamento de Ordem Política e Social – DOPS. Tais entidades serviram como engrenagens para a desmobilização popular e, consequentemente, perseguição e repressão aos que criticavam o regime. 

O jornalista Carlos Heitor Cony, imortal da Academia Brasileira de Letras – ABL, preso duas vezes, citava as dificuldades de convivência com a censura, antes e após o AI-5, com o fechamento total da ditadura. “A gente contava com dois fatores, um a favor e um contra. A favor era que os censores eram muito burros e não percebiam certas nuances. Por sua vez, por serem muito burros, às vezes, cismavam com coisas que não tinham nada demais e proibiam uma peça, um artigo ou uma música”.

Usando de metonímias e anáforas, Chico Buarque, Adoniram Barbosa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João do Vale, Ney Matogrosso, entre outros, compunham músicas com duplos sentidos e metáforas. Tiro ao Álvaro, de Adoniram Barbosa, que usava “tauba”, automóver, revórver, frechada, brincando com as palavras propositadamente incorretas, é um exemplo delas. Chico Buarque, para também driblar a censura, criou um heterônimo para a solução do problema e ele se chamava Julinho da Adelaide. O personagem criado por Chico, supostamente, era um compositor de morro carioca que frequentava as páginas policiais. Julinho da Adelaide gravou duas músicas: Jorge Maravilha e Acorda Amor e ficou tão famoso que em 7 de setembro de 1974, o escritor Mário Prata (amigo de Chico) fez uma entrevista para o Jornal Última Hora. Os amigos com o tempo descobriram, mas os censores não.

Cálice, composta em 1973 por Gilberto Gil e Chico Buarque, é das mais bonitas músicas de resistência ao regime militar e tinha no título a semelhança entre um símbolo religioso ou a súplica pedindo o fim da mordaça que os silenciava, a ditadura.

Em Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, composta por Roberto e Erasmo Carlos em 1971, recorreram à metonímia em alusão aos cabelos de Caetano Veloso, que estava exilado em Londres e a saudade das areias brancas das praias da Bahia.

Carcará, de João do Vale, composição de 1964, que originalmente é uma ave de rapina habitante do nordeste do Brasil, se aproveita da fragilidade das outras aves para se alimentar. Aqui, o Carcará serviu como metáfora para criticar os militares.

Vários artistas foram para o exílio e alguns, como Geraldo Vandré, continuaram a ser perseguidos mesmo após o retorno ao Brasil. Pra não dizer que não falei das flores, composição de 1968, um dos momentos mais conturbados dos anos de chumbo, se tornou o hino da resistência daquela juventude cerceada de liberdade, e ficou censurada por anos. Vandré concorreu com ela no III Festival Internacional da Canção e ficou em segundo lugar e o Maracanãzinho em peso vaiou a decisão dos jurados. “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”, se torna um chamado, uma convocação para que todos fossem às ruas. Em 1991, Walter Clark, diretor-geral da Rede Globo à época, revelou que a direção da emissora recebeu ordens explícitas do comando do I Exército, no Rio de Janeiro, para que Geraldo Vandré não ganhasse o festival. A música vencedora foi Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, e, anos mais tarde, Boni, um dos diretores da Rede Globo, confessou que “ver Chico e Tom serem vaiados foi doloroso, e Vandré ter perdido foi uma imensa sensação de vazio”.

Mas não foi só nas artes que os militares deixaram suas marcas. O jornal Tribuna da Imprensa, aquele que foi de Carlos Lacerda, tinha como proprietário o jornalista Hélio Fernandes. Nos anos 1970, sendo o jornal o único que criticava o regime, teve a sede incendiada uma vez e depredada duas vezes. Os processos que Fernandes moveu contra o estado nacional estão parados há anos, e os valores ultrapassam a 1 bilhão de reais em indenizações. Hélio Fernandes faleceu em março de 2021, aos 100 anos.

Numa época em que os artistas reagiram à ditadura com a voz e um microfone nas mãos, o jornalismo fazia o mesmo empunhando uma caneta, que a voz rouca do povo ecoava de dentro das cátedras das melhores universidades do país pela boca de mentes brilhantes. Percebemos, deste modo, o quanto somos lenientes nos dias atuais. Só quem não conhece a história pode se conformar com um país que não tem o Ministério da Cultura.

Afinal, quem não “caminhou contra o vento, sem lenço e sem documento” ou não se encantou com as Cardinales bonitas e a sensualidade de Bardot, na letra de Caetano e Gil? Quem não quis ser “apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco e vindo do interior”, como Belchior foi? Quem não “sonhou com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo de foguete” ou “chorou com as Marias e Clarisses no solo do Brasil”, como Aldir Blanc e João Bosco escreveram e a grande Elis Regina eternizou com sua voz? Quem não quis “botar o bloco na rua, brincar e botar pra gemer” pulando de alegria com Sérgio Sampaio? Quem não “jurou mentiras e seguiu sozinho, assumindo seus pecados”, igual a Ney Matogrosso? Afinal, “viver é melhor que sonhar, eu sei que o amor é uma coisa boa”, disse poeta Belchior.

Naquela época também tinha os que se levantavam e os que não se importavam, vide Martin Niemöller – “levaram os judeus e não me importei, eu não era judeu”.  A Tropicália tinha como representantes os chamados reacionários ou subversivos pela ditadura e eu já os citei acima. E a Jovem Guarda tinha em Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Ronnie Von, Jerry Adriani, dentre outros, os representantes da elite, da juventude da zona sul do Rio de Janeiro, com a chamada harmonia sofisticada que mesclava jazz e samba.

A ditadura também teve seu hit. Em 1970 Dom, da dupla cearense Dom & Ravel compôs “Eu te amo meu Brasil”. Os militares se apossaram da música, que era na verdade uma marcha militar. Chamados de “adesistas”, ou seja, aqueles artistas que eram simpáticos ao regime, eles ainda foram os autores de “Você também é responsável”, o hino do MOBRAL, programa de alfabetização do governo Médici. No futebol, “todos juntos vamos pra frente Brasil, salve a seleção” foi um hino que pouco tinha a ver com a Seleção Brasileira, mas tinha muito a ver com o suposto progresso nacional alardeado pelos militares.

Esse é um assunto que gera discussões e comentários acalorados e prolongados. Todos nós temos nossas opções de músicas e de artistas diferentes, portanto, na construção desse texto, com certeza, cometi injustiças, admito, até porque seria inviável nessas poucas linhas expressar minha gratidão pela boa música que ouço todos os dias e pelos atos de bravura de quem pensava em primeiro lugar na coletividade.

A música e o perfume induzem sua memória a uma viagem no tempo, te levando a lugares inimagináveis. Quem viveu aquela época ou quem teve curiosidade e bom gosto de estudar o que se passou naquele Brasil dos anos 60 e 70, por certo, não abre mão de ouvir a boa Música Popular Brasileira, nada contra quem prefere ouvir Cabeça Branca ou o velho da lancha, que também é MPB. 

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